terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O caso do vivo-morto ou do morto-vivo

Leandro encontrou o poste. Seu recém-comprado automóvel da marca importada Bossaismarcadamentewrapped atingiu a velocidade de 120km/h naquela avenida do bairro do Rio Vermelho, após a festa de lançamento de seu produto, uma personagem, em uma festa d’uma agência de publicidade. Por sorte, Leandro era de uma família abastada e foi rapidamente levado para o melhor hospital da cidade, operado pelo Melhor Neurocirurgião da Região, quiçá um dos melhores do Brasil. 70% de chances de sobreviver sem sequelas. Todavia, por azar, o Estagiário de Enfermagem responsável por sua UTI estava entretido no seu aparelho celular com o mais novo hit do momento, Léo Trololó, um músico talentoso que, gago, cantava e falava sobre cagar, peidar e tra-traquinagens, com uma peruca de cabelo toda em finas tranças loiras e compridas, um chapéu modelo fedora feminino, coberto de tecido jeans com fita pink alaranjada no meio.
O Estagiário de Enfermagem tinha a obrigação de reconectar o tubo respiratório para o ar passar. Como não conseguiu encaixá-lo, enrolou com a fita adesiva e voltou para o seu celular, para continuar a ver e a se divertir com os vídeos do engraçadíssimo Léo Trololó. No dia seguinte, Leandro foi encontrado morto pelo Neurocirugião. Faltou-lhe oxigênio no cérebro. Ao questionar o Presidente do Hospital, este ordenou manter segredo sobre a morte de Leandro para a família, porque por azar Leandro era de uma família abastada e esta poderia pagar mais alguns dias de UTI, quando Leandro enfim pioraria e seria submetido a mais uma cirurgia, sendo nesta, finalmente, que Leandro seria dado por morto. O Neurocirurgião se negou, mas assim foi feito. Nos sete dias que permaneceu na UTI, o Estagiário de Enfermagem não conseguia largar o celular. Era um dos responsáveis pelos mais de 3 milhões, novecentos e oitenta e sete mil, seiscentos e cinquenta e quatro curtidas nesse explosivo fenômeno nas redes sociais. Léo Trololó vendia a mais nova cerveja popular em um comercial televisivo. Em pouquíssimos dias, seus vídeos alastraram-se viralmente: seu modo único de interpretar seduzia a todos.
Leandro foi finalmente enterrado. Em seu velório, apenas familiares e amigos próximos. Dias antes, Leandro assinara um contrato milionário com uma agência de publicidade. Comprara seu primeiro carro, no qual teria tirado vários selfies ao redor da cidade e feito vários vídeos, sempre sorridente, dizendo algo engraçado, algo que o povo gostava de ouvir. Leandro havia criado uma personagem perfeita, reconheceu a agência de publicidade. Ofereceu-lhe de cara dois milhões para fazer o comercial de uma cerveja. “Uma cerveja?”, perguntou o até então compositor, instrumencista, cantor e escritor refinado, cansado do ostracismo e da total ausência de público. “Sim, uma cerveja feita com milho ou trigo transgênico. Vai topar?”, respondeu o publicitário. Leandro hesitou. Sempre estudou para não ter que se associar a nada que ele combatesse. Sentia-se responsável por aprender e transmitir uma tradição artística. (“Mas eu critico exatamente isso, essa exposição desavergonhada na grande mídia, essa vinculação com produtos errados”, pensou. “Vou mesmo vender meu personagem e me eternizar como ‘Léo Trololó’?”).
Sim.
Arrependido, Leandro saiu da festa de lançamento de sua personagem “Léo Trololó” e acelerou com seu carro novo o máximo que conseguiu em uma linha reta. Leandro encontrou o poste.

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