“Se você tira a mentira vital de
um homem comum, tira-lhe ao mesmo tempo a felicidade” (Henrik Ibsen). Como,
então, dizer ao consumidor brasileiro que seus direitos são uma farsa, sem
conseguir ganhar ferozes vozes contrárias me dizendo que estou errada?
Aqui eu não vou falar de
corrupção nem de combustível fóssil, mas de combustível humano. Vou falar de como
a força de trabalho dos consumidores brasileiros está na mão das instituições
financeiras. Para mim, algo muito mais sério que petróleo. Pois de fato não sei
se “há algo de podre no reino da Dinamarca”, mas que há no Brasil, há. E não é
de agora.
CASO 1: Os planos econômicos
Sou de uma geração que cresceu
aos domingos ouvindo no Faustão a musiquinha publicitária “o tempo passa, o
tempo voa, e a poupança Bamerindos continua numa boa... é a poupança
Bamerindos!”. Os melhores comerciais eram os de poupança: em um, a mulher
queria fazer a festa de casamento, poupava e estava lá de vestido de noiva
contando sua alegria. No outro, o homem comprava seu carro sonhado. Tinha um
que a senhorinha comprava o brinquedo tão querido de seu neto. Todos associavam
poupança à “felicidade” (e esses eram os “valores” vinculados ao sucesso
pessoal). Foi numa época que um presidente da direita assumiu, todo pomposo, e
sua posse foi marcada pela esperança da caça aos marajás. Com uma mão, o então
presidente deu o Código de Defesa do Consumidor aos brasileiros; com a outra,
confiscou suas poupanças, causando pânico e terror generalizado entre a “classe
média”. Isso eu não entendia. Só vi os adultos aperreados. Muito. Alguns até se
mataram. Eu não entendia nada.
Só vim tentar começar a entender
quando numa matéria do Jornal Hoje a Rede Globo rememorava os 20 anos dos
planos econômicos, dizia que quem tinha poupança naquela época teria direito à diferença
da correção dos valores e, por fim, mostrava um consumidor que tinha conseguido
na justiça receber a diferença corrigida daquele “erro de cálculo”, logicamente
com um sorriso no rosto esperançoso com o alvará judicial, o qual iria utilizar
para reformar sua casa. Ao final, a reportagem mandava procurar as Defensorias
Públicas de todo o Brasil para “garantir seu direito”.
Ocorre que praticamente não há
Defensor Público nesse país, que dirá para atuar na área de direito de
consumidor. Os poucos que tinham enlouqueceram com a súbita demanda de milhares
de pessoas às suas portas e, se não os atendessem, os consumidores “perderiam
seus direitos”. Resultado: Ação Civil Pública para garantir o direito de quem
se encontrava na mesma situação e, posteriormente, com a sentença favorável, na
fase de liquidação da sentença seriam individualizadas as demandas e supostos
créditos.
Todavia, não contávamos com a
astúcia do sistema financeiro. Quase que como um erro sobre a pessoa do Código
Penal, o STJ atirou em um e acertou o outro: decidiu inovar sua interpretação e
definiu o prazo de 5 (cinco) anos para propor Ação Civil Pública, com analogia
ao prazo previsto na lei da Ação Popular. Não seria mais o prazo do direito,
como era interpretado até então. Ou seja, aquela Ação Civil Pública dos planos
econômicos está fadada ao insucesso (pois proposta com base no prazo
prescricional do direito, ou seja, 20 anos). O “alívio” na consciência dos
Defensores é que também as ações individuais estão sendo julgadas improcedentes,
porque os Tribunais entendem que o consumidor precisa comprovar o valor que
tinha na conta ou ao menos a existência desta (inversão do ônus da prova como
previsto no CDC? Ilusão!). Como a mídia já há anos ensina que o consumidor só
deve guardar comprovante por 5 anos, quase ninguém tem comprovante de poupança de
20 anos, até porque os bancos daquela época já foram quase todos extintos ou
transformados e re-transformados em outros. Passa-se mais tempo tentando achar
o paradeiro de um banco do que para entender o Código de Defesa do Consumidor. O
Banco Bamerindos, se está numa boa, não sei, porque já não existe mais. Eu,
como naquela época, continuo sem entender nada e a ver os adultos aperreados.
Muito.
CASO 2: A penhora do salário
Pouco mais de dez anos do
confisco das poupanças, as pessoas já não tinham mais a prática de economizar
para comprar. Começaram a comprar parcelado. Inicialmente, 3 parcelas, depois,
9, 12, 24, 48, 60, 90, 10 anos. Divida, dívida, uma diferença de acentuação.
Já com um governo de esquerda,
veio a penhora de 30% do salário. Em 2003, foi autorizado ao consumidor fazer
financiamento com pagamento a ser descontado diretamente no seu contracheque.
Não estou falando de 30% do valor líquido, após descontos de INSS, sindicato,
plano de saúde empresarial, convênio farmácia ou convênio supermercado firmados
em acordo coletivo de trabalho, assim como pensão alimentícia. Estou falando do
valor bruto, ou seja, a cada R$ 100,00, R$ 30,00 passaram a ser para pagamento
à instituição financeira.
O Banco BMG, patrocinador da
campanha do PT e de praticamente todos os times de futebol do Brasil, saiu na
dianteira, abocanhando parte do ordenado de aposentados de todo o país, para
pagamento de financiamentos com juros supostamente modestos se comparados com
os do cheque especial, seduzindo os “novos consumidores” a se endividarem para
adquirir bens de consumo até então supérfluos, especialmente as televisões,
cada vez maiores e mais atrativas. Engraçado que a gente vê na Justiça um
grande índice de reclamação por produtos com defeito, especialmente geladeiras
e máquinas de lavar. Muito raramente uma televisão dá problema. Não é à toa que
o serviço de telecomunicações é tido como serviço público essencial pela lei.
Quando todos vivem numa realidade de Matrix, realmente desplugar é o fim dos
tempos.
E aquele contrato inicial de
financiamento feito pelo idoso parece se multiplicar na mão de instituições
financeiras que nem agência física têm. Só descobrimos a existência delas
quando, na Justiça, vamos atrás e percebemos que são instituições que compraram
créditos de outras instituições financeiras, e saem fazendo descontos dos
consumidores, renovando os contratos, creditando valores nas contas correntes
dos idosos e depois descontam as parcelas de novos empréstimos que o consumidor
nem sabe o que é e nem sabe a quem perguntar, pois nem conhece aquela
instituição financeira. É pior do que bactéria.
Ano passado, por Medida
Provisória, essa porcentagem de desconto no salário do trabalhador/aposentado
passou de 30% para 35%, pois esses 5% serão para pagamento de despesas
contraídas por cartão de crédito. Afinal, as instituições financeiras precisam
da contrapartida dos patrocínios às campanhas eleitorais.
CASO 3 – Juizado especial e
operadoras de cartão de crédito
Embora já de hoje é cantado que
cartão de crédito é uma navalha, o povo, acostumado com músicas monossilábicas,
caiu no conto do vigário. Como o Código de Defesa do Consumidor diz que são
nulas as cláusulas que onerem excessivamente o consumidor, o iludido que pagou
por meses “o mínimo” da fatura vai ao Juizado Especial para, sem advogado, utilizar
o benefício da assistência gratuita e revisar seu débito, que só conseguirá
pagar se morrer e nascer 5 vezes, tamanho é o montante de juros sobre juros.
Ocorre que há juiz que julga desfavorável
ao consumidor e, acatando um pedido da instituição financeira (pedido
contraposto), julga favorável à empresa, concedendo a esta agora um título
executivo judicial. Já vi um caso assim, no qual o consumidor entrou no Juizado
como autor e saiu como réu. Como não estava acompanhado por advogado, nem
entendeu a sentença, e não recorreu. Chegou lá na Defensoria para fazer a
contestação de uma ação de cobrança, cujo valor ele nem conseguiu discutir. “E
agora, José? A festa acabou...”
CASO 3 – O sonho do carro
próprio.
Aí o sujeito vê o comercial do
carro na televisão e vai à concessionária. O carro que valeria 5 ele compra por
10 e faz um contrato de financiamento pra pagar 30. Quando chega na prestação
6, fica desempregado, alguém adoece na família, algo aleatório acontece, não
consegue pagar mais. Um grande escritório de advocacia contratado pela
instituição financeira rapidamente consegue a busca e apreensão do veículo
(processo que com o novo CPC vai ficar ainda mais rápido), leiloa-o por 3 e
cobra 27 ao consumidor, pois as 6 prestações que ele pagou ficaram para os
honorários, custas, juros de mora etc.
CASO 4 – O ‘new slave’
Há pouco mais de cem anos, os
escravos sabiam de onde vinham as chibatadas. Fugiam para quilombos,
rebelavam-se. Agora, os “new slaves” são chicoteados por suas próprias mentes, atormentados
por dívidas, dívidas estas “voluntariamente” contraídas por eles. Após um dia
enfadonho de trabalho, chegam a suas casas e se conectam com as televisões ou
redes sociais. Não mais se rebelam, não sabem nem como. Nem os líderes
conseguem compreender isso. Estão preocupados com o time que irá vencer a
próxima eleição, se de direita ou esquerda, sem perceber que ambos estão
preocupados com a resposta aos patrocinadores, os quais, convenhamos, devem
controlar também os números das urnas eletrônicas.
Não vou nem falar do contrato de
FIES no qual os consumidores figuram como fiadores. Até porque o povo não sabe,
mas só há duas certezas nessa vida: que vamos morrer e que o fiador se lasca.
Nos contratos, as instituições financeiras colocam cláusulas nas quais o consumidor
renuncia direitos tais como benefício de ordem (cobrar primeiro ao devedor
principal contratante e só depois ao fiador), porque até bem de família o
fiador pode perder para pagar dívida. Isso não é esclarecido ao contratante. A pessoa
de boa-fé só descobre isso depois.
Vou terminar falando do senhor
idoso que chegou essa semana reclamando que estava com pressão alta, passou mal
no Fórum Rui Barbosa, foi levado a uma sala, onde foi atendido e medicado.
Tinha ido pegar o número de seu processo, pois teve seu nome incluído no
cadastro de inadimplentes e estava recebendo descontos de um contrato de
financiamento que não fez. Sua parca aposentadoria é para comprar alimento
industrializado no supermercado, remédios, transporte para suas idas e vindas a
médicos. Expliquei para ele que o nome dele é algo virtual, um signo escolhido
pela mãe dele, que o CPF é algo virtual, um signo escolhido pela Receita
Federal. A única coisa real e viva que existia naquela sala era ele e eu, seres
humanos. Perguntei o que ele tinha se alimentado. O consumidor brasileiro, só
porque mora no Brasil, é hipervulnerável. Ele entendeu a explicação sobre como
poderia economizar com medicamentos e idas e vindas a consultórios médicos se
passasse a se alimentar corretamente e a praticar exercícios físicos, assim
finalmente conseguiria se libertar desse sistema virtual. O tempo livre,
deveria procurar algo de criativo para desenvolver suas habilidades, plantar,
aprender algo novo. Afinal, nesses tempos de lideranças políticas desonestas,
seja de direita ou esquerda, a liberdade é um caminho a ser traçado
individualmente, como já dizia o advogado Gandhi. Mas só é para quem quer
experimentar dessa palavra “que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que
explique e ninguém que não entenda”, como definia Cecília Meireles. Como a lei
aprisiona, o “new slave” pode se libertar sem depender de lei áurea, é questão
de tempo, educação, persistência e criatividade. Só precisa saber disso pra
começar.
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