sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ATENÇÃO, CLARICE NASCIMENTO!

“Atenção Clarice Nascimento! Última chamada para o voo 1609 com destino a São Paulo”

Da fila do banheiro feminino, Clarice percebeu que, se não abandonasse aquela espera necessária naquele exato momento, poderia perder sua viagem de volta pra casa. Se perdesse o voo, iria acabar postergando seu tão esperado encontro com seu canto, sua paz. O atraso no embarque pra o voo 1609 soava proposital: invadida por uma profunda solidão, Clarice sentia-se desejada quando ouvia seu nome ser falado pela comissária da empresa de viagem. “Sim, eles me aguardam, eles me esperam, eles chamam por mim”, pensou ao ouvir seu nome. “Atenção Clarice Nascimento! Última chamada...”
A sensação de ser desejada acalentava-lhe como pôr as frias mãos pra esquentar no bolso do casaco numa úmida tarde no inverno de São Paulo. Mas o pensamento denunciava que ela se fazia necessária ali imediatamente, não por sua história de vida, sua maneira de compartilhar sentimentos, de se revelar... Seu nome era chamado pra cumprir um destino: sentar na poltrona 22D. Todos a queriam ali pra que todos pudessem seguir. Todos os passageiros do voo 1609 concentrados em suas passagens, sentados em seus assentos numerados como um número de telefone celular.
Satisfeita, apresentou apressadamente seu bilhete, na esperança que não fosse exigido mostrar qualquer documento, possivelmente perdido em meio a tantos papéis em sua bolsa. “A identidade, por favor”, ordenava a Comissária. Mostrando o documento, refletia: “Sim, eu sou Clarice, será que a todo momento tenho que comprovar isso?”.
Dominada pela vontade de silenciar sua solidão, Clarice depositou sem ajuda sua pesada mochila no compartimento de bagagem, sentou na poltrona 22D, aguardou o comandante levantar voo e embalada pela turbulência como num berço, logo adormecera como um bebê.
Mas tal como sua avó lhe ensinara, deveria ter ido ao banheiro antes de sair, pra não interromper percursos a fim de liberar a água saudavelmente consumida com leve excesso. Sorte que estava na poltrona do corredor. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro do avião, que mal cabia seu 1,60 m de altura e o singelo curvar das formas de seus 53 kg.
Encontrou papel no piso de outras mãos não educadas jogadas fora de seu depósito convencional chamado lixeira. “Suportar a sujeira até vai, mas limpar sujeira alheia é demais. Mas e se alguém entrar depois e pensar que fui eu?” . Ainda assim, não valeria sua colaboração à organização do local, afinal seu papel ali era meramente de figuração num voo lotado de passageiros.
Foi quando estava deixando a água de seu corpo seguir outro destino que a porta se  abre e ela encara olhos claros fitando espantadamente sua posição, estupefatos ao se deparar com sua pessoa no banheiro de porta não trancada corretamente!
Aquele Comissário de Olhos Claros, ao empurrar aquela porta, não sabia que estaria a violar um momento de sublima intimidade de Clarice. Há tanto tempo considerava reservado os instantes de eliminar dejetos que nenhum familiar ou amigo presenciara tal cena. Com uma velocidade constrangida, Clarice puxou bruscamente a porta, mas não tinha como voltar pra juntar o que havia se rompido: aquele que seria um segredo seu tinha sido violado. Um total estranho presenciara seu momento de maior intimidade. Clarice sentia como se sua alma tivesse sido estuprada: se o que havia de mais recôndito em Clarice fora revelado pra um estranho, nada mais tinha por que ser segredo.
Clarice voltou pra seu assento com uma vontade de se abrir pra o mundo, de se exibir, de contar as suas histórias, e ficou pensando em todas as histórias que ela poderia contar, enquanto estava ali esperando o Comissário passar de novo pra ela olhar de novo nos olhos dele. Clarice escuta o barulhinho do carrinho vindo em sua direção e já começa a ficar nervosa: "é ele! Ele está vindo! Como será a reação dele? Será que ele vai me aprovar?".
E aí ficou naquela tensão. E aí ele chegou, ela olhou pra ele e percebeu que não era ele o comissário que tinha aberto a porta. Voltou a ficar tranquila, mas novamente pensando em todas as coisas que ela queria fazer pra se expandir e se mostrar pra o mundo.
Quando ela estava saindo, Clarice passou por ele, mas ele não olhou pra ela. Ele não a viu saindo e ela ficou sem saber qual foi a opinião dele diante daquele momento de tamanha intimidade dela.
Voltou pra casa com aquele questionamento de qual teria sido a reação dele. E aí passou pela Avenida Brasil, passou por uma concessionária, alguns bancos, uma clínica de estética, outros bancos, uma construtora, uma imobiliária, outras casas de luxo, salão de beleza, e foi chegando no seu prédio, subiu até o 14º andar, abriu a porta, estava sozinha em casa, entrou no banheiro, e trancou a porta.


(inspirada no conto "Ele me bebeu" do livro "A via crucis do corpo", de Clarice Lispector)


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