“Atenção Clarice Nascimento! Última
chamada para o voo 1609 com destino a São Paulo”
Da fila do banheiro feminino, Clarice
percebeu que, se não abandonasse aquela espera necessária naquele exato
momento, poderia perder sua viagem de volta pra casa. Se perdesse o voo, iria
acabar postergando seu tão esperado encontro com seu canto, sua paz. O atraso
no embarque pra o voo 1609 soava proposital: invadida por uma profunda solidão,
Clarice sentia-se desejada quando ouvia seu nome ser falado pela comissária da
empresa de viagem. “Sim, eles me aguardam, eles me esperam, eles chamam por
mim”, pensou ao ouvir seu nome. “Atenção Clarice Nascimento! Última chamada...”
A sensação de ser desejada acalentava-lhe
como pôr as frias mãos pra esquentar no bolso do casaco numa úmida tarde no
inverno de São Paulo. Mas o pensamento denunciava que ela se fazia necessária
ali imediatamente, não por sua história de vida, sua maneira de compartilhar
sentimentos, de se revelar... Seu nome era chamado pra cumprir um destino:
sentar na poltrona 22D. Todos a queriam ali pra que todos pudessem seguir.
Todos os passageiros do voo 1609 concentrados em suas passagens, sentados em
seus assentos numerados como um número de telefone celular.
Satisfeita, apresentou apressadamente seu
bilhete, na esperança que não fosse exigido mostrar qualquer documento,
possivelmente perdido em meio a tantos papéis em sua bolsa. “A identidade, por
favor”, ordenava a Comissária. Mostrando o documento, refletia: “Sim, eu sou
Clarice, será que a todo momento tenho que comprovar isso?”.
Dominada pela vontade de silenciar sua
solidão, Clarice depositou sem ajuda sua pesada mochila no compartimento de
bagagem, sentou na poltrona 22D, aguardou o comandante levantar voo e embalada
pela turbulência como num berço, logo adormecera como um bebê.
Mas tal como sua avó lhe ensinara, deveria
ter ido ao banheiro antes de sair, pra não interromper percursos a fim de
liberar a água saudavelmente consumida com leve excesso. Sorte que estava na
poltrona do corredor. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro do avião, que mal
cabia seu 1,60 m de altura e o singelo curvar das formas de seus 53 kg.
Encontrou papel no piso de outras mãos não
educadas jogadas fora de seu depósito convencional chamado lixeira. “Suportar a
sujeira até vai, mas limpar sujeira alheia é demais. Mas e se alguém entrar
depois e pensar que fui eu?” . Ainda assim, não valeria sua colaboração à
organização do local, afinal seu papel ali era meramente de figuração num voo
lotado de passageiros.
Foi quando estava deixando a água de seu
corpo seguir outro destino que a porta se abre e ela encara olhos claros
fitando espantadamente sua posição, estupefatos ao se deparar com sua pessoa no
banheiro de porta não trancada corretamente!
Aquele Comissário de Olhos Claros, ao
empurrar aquela porta, não sabia que estaria a violar um momento de sublima
intimidade de Clarice. Há tanto tempo considerava reservado os instantes de
eliminar dejetos que nenhum familiar ou amigo presenciara tal cena. Com uma
velocidade constrangida, Clarice puxou bruscamente a porta, mas não tinha como
voltar pra juntar o que havia se rompido: aquele que seria um segredo seu tinha
sido violado. Um total estranho presenciara seu momento de maior intimidade.
Clarice sentia como se sua alma tivesse sido estuprada: se o que havia de mais
recôndito em Clarice fora revelado pra um estranho, nada mais tinha por
que ser segredo.
Clarice voltou pra seu assento com uma
vontade de se abrir pra o mundo, de se exibir, de contar as suas histórias, e
ficou pensando em todas as histórias que ela poderia contar, enquanto estava
ali esperando o Comissário passar de novo pra ela olhar de novo nos olhos dele.
Clarice escuta o barulhinho do carrinho vindo em sua direção e já começa a
ficar nervosa: "é ele! Ele está vindo! Como será a reação dele? Será que
ele vai me aprovar?".
E aí ficou naquela tensão. E aí ele
chegou, ela olhou pra ele e percebeu que não era ele o comissário que tinha
aberto a porta. Voltou a ficar tranquila, mas novamente pensando em todas as
coisas que ela queria fazer pra se expandir e se mostrar pra o mundo.
Quando ela estava saindo, Clarice passou
por ele, mas ele não olhou pra ela. Ele não a viu saindo e ela ficou sem saber
qual foi a opinião dele diante daquele momento de tamanha intimidade dela.
Voltou pra casa com aquele questionamento
de qual teria sido a reação dele. E aí passou pela Avenida Brasil, passou por
uma concessionária, alguns bancos, uma clínica de estética, outros bancos, uma
construtora, uma imobiliária, outras casas de luxo, salão de beleza, e foi
chegando no seu prédio, subiu até o 14º andar, abriu a porta, estava sozinha em
casa, entrou no banheiro, e trancou a porta.
(inspirada no conto "Ele me
bebeu" do livro "A via crucis do corpo", de Clarice Lispector)
Nenhum comentário:
Postar um comentário